Harold Bloom é professor na Universidade de Yale e autor de “The Western Canon”. Ele escreveu essa coluna para o Los Angeles Times em Setembro de 2003. |
A decisão de conceder o premio anual da National Book
Foundation por “notável contribuição” para Stephen King é extraordinária, mais
um golpe no chocante processo de emburrecer nossa vida cultural. Eu descrevi
King no passado como um escritor barato, mas talvez mesmo isso seja generoso
demais. Ele não compartilha nada com Edgar Allan Poe. Ele não passa de um
escritor imensamente inadequado numa base de sentença por sentença, parágrafo
por parágrafo, livro por livro. A indústria editorial rebaixou-se terrivelmente
aos conferir a King um prêmio que havia sido concedido anteriormente para
romancistas como Saul Bellow e Philip Roth e para o dramaturgo Arthur Miller.
Ao premiar King eles reconhecem nada além do valor comercial dos seus livros, que
vendem aos milhões mas fazem pouco mais pela humanidade do que manter o mundo
editorial em pé. Se esse será o critério no futuro, então talvez no ano que vem o comitê deva dar
o prêmio por notável contribuição a Danielle Steel, e claro o Prêmio Novel da
literatura deveria ir para J.K. Rowling.
O que está ocorrendo é parte de um fenômeno sobre o
qual eu escrevi alguns anos atrás quando
me pediram para comentar sobre Rowling. Eu fui para a libraria da Universidade
de Yale e comprei e li “Harry Potter e a Pedra Filosofal”. Eu sofri bastante no
processo. A escrita era pavorosa; o livro era terrível. À medida que lia, eu
notei que todas as vezes que um personagem saia para uma caminhada, a autora
dizia que o personagem “esticava as pernas”. Eu comecei a marcar no verso de um
envelope todas as vezes que a frase era repetida. Eu parei apenas após já ter
marcado o envelope algumas dúzias de vezes. Eu não podia acreditar. A mente de
Rowling era tão governada por clichês e metáforas mortas que ela não tinha
outro estilo de escrita.
Mas quando eu escrevi aquilo num jornal, eu fui denunciado. Disseram-me
que crianças agora iam ler apenas J.K. Rowling e me perguntaram se não era,
apesar de tudo, melhor assim do que se não lessem coisa alguma? Se Rowling era
o que era preciso para os fazer pegar um livro, isso não era uma coisa boa?
Não é. “Harry Potter” não fará com que nossas crianças leiam
“Just So Stories” de Kipling ou o seu “Jungle Book”. Não os conduzirá à “Thirteen Clocks” de
Thurber ou “Wind in the Willows” de Kenneth Grahame ou à “Alice” de Lewis
Carroll.
Mais tarde eu li uma resenha longa e pródiga sobre Harry
Potter, escrita pelo mesmo Stephen King. Ele escreveu algo no sentido de que “se
as crianças estão lendo Harry Potter aos 11 ou 12 anos, então quando estiverem
mais velhas elas poderão ler Stephen King”. E ele estava absolutamente certo.
Ele não estava sendo irônico. Quando você lê “Harry Potter” você está, de fato,
treinado para ler Stephen King.
Nossa sociedade, nossa literatura e nossa cultura estão
sendo emburrecidas e as causas são bastante complexas. Eu tenho 73 anos de
idade. Durante uma vida inteira ensinando Inglês, eu assistir o estudo da
literatura ser degradado. Muito pouco resta do verdadeiro estudo das
humanidades. Minha assistente veio até mim dois anos atrás dizendo que assistiu
a um seminário no qual o professor passou duas horas dizendo que Walt Whitman
era um racista. Isso sequer é absurdo no bom sentido. É insuportável.
Eu iniciei como estudioso dos poetas românticos. Nos anos
1950 e começo dos anos 1960, entendia-se que os grandes poetas da língua inglesa
foram Percy Bysshe Shelley, William Wordsworth, Lord Byron, John Keats, William
Blake, Samuel Taylor Coleridge. Mas hoje eles são Felicia Hemans, Charlotte
Smith, Mary Tighe, Laetitia Landon, e tantos outros que simplesmente não conseguem
escrever. Uma dramaturga de quarta categoria como Aphra Behn está sendo incluída
em muitos currículos no país ao invés de Shapespeare.
Recentemente eu discursei no funeral do meu velho amigo
Thomas M. Green de Yale, talvez o mais distinto estudioso de literatura
renascentista de sua geração. Eu disse, “eu temo que algo de grande valor tenha
se acabado para sempre.”
Hoje em dia existem quatro romancistas americanos que sei
que ainda estão na ativa e que merecem nosso louvor. Thomas Pynchon ainda está
escrevendo. Meu amigo Philip Roth, que agora dividirá seu prêmio por “contribuição
notável” com Stephen King, é um grande comediante e sem dúvida encontraria algo
engraçado para dizer a respeito disso. Há Cormac McCarthy, cujo romance “Blood
Meridian” está no nível de um “Moby Dick” de Herman Melville, e Don DeLillo,
com seu grande “Underworld”.
Ao invés disso, o prêmio desse ano vai para King. O que é um
erro terrível.
Fonte: The Boston Globe (em Inglês)
Muito bom, valeu pela publicação
ResponderExcluir