sábado, 11 de janeiro de 2014

Harold Bloom: Emburrecendo os leitores americanos.

Harold Bloom é professor na Universidade de Yale e autor de “The Western Canon”. Ele escreveu essa coluna para o Los Angeles Times em Setembro de 2003.


A decisão de conceder o premio anual da National Book Foundation por “notável contribuição” para Stephen King é extraordinária, mais um golpe no chocante processo de emburrecer nossa vida cultural. Eu descrevi King no passado como um escritor barato, mas talvez mesmo isso seja generoso demais. Ele não compartilha nada com Edgar Allan Poe. Ele não passa de um escritor imensamente inadequado numa base de sentença por sentença, parágrafo por parágrafo, livro por livro. A indústria editorial rebaixou-se terrivelmente aos conferir a King um prêmio que havia sido concedido anteriormente para romancistas como Saul Bellow e Philip Roth e para o dramaturgo Arthur Miller. Ao premiar King eles reconhecem nada além do valor comercial dos seus livros, que vendem aos milhões mas fazem pouco mais pela humanidade do que manter o mundo editorial em pé. Se esse será o critério no futuro,  então talvez no ano que vem o comitê deva dar o prêmio por notável contribuição a Danielle Steel, e claro o Prêmio Novel da literatura deveria ir para J.K. Rowling.

O que está ocorrendo é parte de um fenômeno sobre o qual  eu escrevi alguns anos atrás quando me pediram para comentar sobre Rowling. Eu fui para a libraria da Universidade de Yale e comprei e li “Harry Potter e a Pedra Filosofal”. Eu sofri bastante no processo. A escrita era pavorosa; o livro era terrível. À medida que lia, eu notei que todas as vezes que um personagem saia para uma caminhada, a autora dizia que o personagem “esticava as pernas”. Eu comecei a marcar no verso de um envelope todas as vezes que a frase era repetida. Eu parei apenas após já ter marcado o envelope algumas dúzias de vezes. Eu não podia acreditar. A mente de Rowling era tão governada por clichês e metáforas mortas que ela não tinha outro estilo de escrita.

Mas quando eu escrevi aquilo num jornal, eu fui denunciado. Disseram-me que crianças agora iam ler apenas J.K. Rowling e me perguntaram se não era, apesar de tudo, melhor assim do que se não lessem coisa alguma? Se Rowling era o que era preciso para os fazer pegar um livro, isso não era uma coisa boa?
Não é. “Harry Potter” não fará com que nossas crianças leiam “Just So Stories” de Kipling ou o seu “Jungle Book”.  Não os conduzirá à “Thirteen Clocks” de Thurber ou “Wind in the Willows” de Kenneth Grahame ou à “Alice” de Lewis Carroll.

Mais tarde eu li uma resenha longa e pródiga sobre Harry Potter, escrita pelo mesmo Stephen King. Ele escreveu algo no sentido de que “se as crianças estão lendo Harry Potter aos 11 ou 12 anos, então quando estiverem mais velhas elas poderão ler Stephen King”. E ele estava absolutamente certo. Ele não estava sendo irônico. Quando você lê “Harry Potter” você está, de fato, treinado para ler Stephen King.

Nossa sociedade, nossa literatura e nossa cultura estão sendo emburrecidas e as causas são bastante complexas. Eu tenho 73 anos de idade. Durante uma vida inteira ensinando Inglês, eu assistir o estudo da literatura ser degradado. Muito pouco resta do verdadeiro estudo das humanidades. Minha assistente veio até mim dois anos atrás dizendo que assistiu a um seminário no qual o professor passou duas horas dizendo que Walt Whitman era um racista. Isso sequer é absurdo no bom sentido. É insuportável.

Eu iniciei como estudioso dos poetas românticos. Nos anos 1950 e começo dos anos 1960, entendia-se que os grandes poetas da língua inglesa foram Percy Bysshe Shelley, William Wordsworth, Lord Byron, John Keats, William Blake, Samuel Taylor Coleridge. Mas hoje eles são Felicia Hemans, Charlotte Smith, Mary Tighe, Laetitia Landon, e tantos outros que simplesmente não conseguem escrever. Uma dramaturga de quarta categoria como Aphra Behn está sendo incluída em muitos currículos no país ao invés de Shapespeare.

Recentemente eu discursei no funeral do meu velho amigo Thomas M. Green de Yale, talvez o mais distinto estudioso de literatura renascentista de sua geração. Eu disse, “eu temo que algo de grande valor tenha se acabado para sempre.”

Hoje em dia existem quatro romancistas americanos que sei que ainda estão na ativa e que merecem nosso louvor. Thomas Pynchon ainda está escrevendo. Meu amigo Philip Roth, que agora dividirá seu prêmio por “contribuição notável” com Stephen King, é um grande comediante e sem dúvida encontraria algo engraçado para dizer a respeito disso. Há Cormac McCarthy, cujo romance “Blood Meridian” está no nível de um “Moby Dick” de Herman Melville, e Don DeLillo, com seu grande “Underworld”.

Ao invés disso, o prêmio desse ano vai para King. O que é um erro terrível.


Fonte: The Boston Globe (em Inglês)

Um comentário: